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Não chore, papai
Embora
você proibisse, tínhamos combinado: depois da sesta iríamos ao rio e a
bicicleta já estava no corredor que ia dar na rua. Era uma Birmingham que Tia
Gioconda comprara em São Paulo e enlouquecia os piás da vizinhança, que a
pediam para andar na praça e depois, agradecidos, me presenteavam com estampas
do Sabonete Eucalol.
Na
hora da sesta nossa rua era como as ruas de uma cidade morta. Os raros
automóveis pareciam sestear também, à sombra dos cinamomos, e nenhum vivente se
expunha ao fogo das calçadas. Às vezes passava chiando uma carroça e então
alguém, querendo, podia pensar: como é triste a vida de cavalo.
Em
casa a sesta era completa, o cachorro sesteava, o gato, sesteavam as galinhas
nos cantos sombrios do galinheiro. Mariozinho e eu, você mandava, sesteávamos
também, mas naquela tarde a obediência era fingida.
Longe,
longíssimo era o rio, para alcançá-lo era preciso atravessar a cidade, o
subúrbio e um descampado de perigosa solidão. Mas o que e a quem temeríamos, se
tínhamos a Birmingham? Era a melhor bicicleta do mundo, macia de pedalar
coxilha acima e como dava gosto de ouvir, nos lançantes, o delicado sussurro da
catraca!
Tínhamos a Birmingham, mas era a primeira vez que, no rio, não tínhamos
você, por isso redobrei os cuidados com o mano. Fiz com que sentasse na areia
para juntar seixos e conchinhas e enquanto isso, eu, que era maior e tinha
pernas compridas, entrava n’água até o peito e me segurava no pilar da ponte
ferroviária.
Ali
mesmo me deixei ficar, a fruir cada minuto, cada segundo daquela mansa
liberdade, vendo o rio como jamais o vira, tão amável e bonito como teriam
sido, quem sabe, os rios do Paraíso. E era muito bom saber que ele ia dar num
grande rio e este num maior ainda, e que as mesmas águas, dando no mar, iam
banhar terras distantes, tão distantes que nem a Tia Gioconda conhecia.
Eu viajava nessas águas e cada porto era
uma estampa do cheiroso sabonete.
Senhores passageiros, este é o Taj Mahal, na Índia, e
vejam a Catedral de Notre Dame na capital da França, a Esfinge do Egito, o
Partenon da Grécia e esta, senhores passageiros, é a Grande Muralha da China –
isso sem falar nas antigas maravilhas, entre elas a que eu mais admirava, os
Jardins Suspensos que Nabucodonosor mandara fazer para sua amada, a filha de
Ciáxares, que desafeita ao pó da Babilônia vivia nostálgica das verduras da
Média.[1]
E me
prometia viajar de verdade, um dia, quando crescesse, e levar meu irmãozinho
para que não se tornasse, ai que pena, mais um cavalo nas ruas da cidade morta,
e então vi no alto do barranco você e seu Austin.
Comecei
a voltar e perdi o pé e nadei tão furiosamente que, adiante, já braceava no
raso e não sabia. Levantei-me, exausto, você estava à minha frente, rubro e com
as mãos crispadas.
Mariozinho foi com você no Austin, eu pedalando atrás e
adivinhando o outro lado da aventura: aquele rio que parecia vir do Paraíso ia
desembocar no Inferno.
Você
estacionou o carro e mandou o mano entrar. Pôs-se a amaldiçoar Tia Gioconda e,
agarrando a bicicleta, ergueu-a sobre a cabeça e a jogou no chão. Minha Birmingham,
gritei. Corri para levantá-la, mas você se interpôs, desapertou o cinto e
apontou para a garagem, medonho lugar dos meus corretivos.
Sentado
no chão, entre cabeceiras de velhas camas e caixotes de ferragem caseira,
esperei que você viesse. Esperei sem medo, nenhum castigo seria mais doloroso
do que aquele que você já dera. Mas você não veio. Quem veio foi mamãe, com um
copo de leite e um pires de bolachinha-maria. Pediu que comesse e fosse lhe
pedir perdão. E passava a mão na minha cabeça, compassiva e triste.
Entrei no quarto. Você estava sentado na cama, com o rosto entre as
mãos. “Papai”, e você me olhou como se não me conhecesse ou eu não estivesse
ali. “Perdão”, pedi. Você fez que sim com a cabeça e no mesmo instante dei
meia-volta, fui recolher minha pobre bicicleta, dizendo a mim mesmo, jurando
até, que você podia perdoar quantas vezes quisesse, mas que eu jamais o
perdoaria.
Mas
não chore, papai.
Quem, em
menino, desafeito ao pó de sua cidade, sonhou com os Jardins da Babilônia e
outras estampas do Sabonete Eucalol não acha em seu coração lugar para o
rancor. Eu jurei em falso. Eu perdoei você.
[1] Os Jardins Suspensos da Babilônia foram
construídos pelo rei Nabucodonosor, para agradar e consolar sua esposa
preferida Amitis, que nascera na Média, um reino vizinho, e vivia com saudades
dos campos e florestas de sua terra.
QUESTÕES SOBRE O TEXTO
01. O primeiro
parágrafo do conto já revela ao leitor que a história está construída sobre um
ato de desobediência.
a) COPIE do texto
expressão revela isso?
b) De que desobediência
se trata?
c) Encontre nesse parágrafo o trecho que expresse
toda a ansiedade do protagonista em relação ao passeio até o rio e COPIE-O.
02. No conto que você leu, há um conflito que se
desenvolve desde o início. Qual é esse conflito?
03. Banhar-se no rio traz uma dupla satisfação para
o menino.
a) Que satisfações o menino experimenta ao entrar no
rio?
Que outras impressões a água do rio trazem à imaginação
do menino?
04. Releia. “Eu
viajava nessas águas e cada porto era uma estampa do cheiroso sabonete.”
a) Que
sentido da palavra viajava, nesse trecho?
b) Que relação
há entre a viagem do menino e as estampas do sabonete?
05. A partir de determinado momento, a tensão da
narrativa cresce, numa sequência de eventos, até explodir num ato violento, até
explodir em um ato violento.
a) Que fato determina esse momento de maior tensão?
b) Qual a expectativa do menino em relação à atitude
do pai?
c) Que ato violento fecha a cena do rio?
06. Após o clímax, a situação se transforma.
Enquanto espera pelo castigo do pai na garagem, o que muda no sentimento do
menino?
07. Releia.
“Mas não chore, papai.
Quem, em
menino, desafeito ao pó de sua cidade, sonhou com os Jardins da Babilônia e
outras estampas do Sabonete Eucalol não acha em seu coração lugar para o rancor.
Eu jurei em falso. Eu perdoei você.”
a) Por que motivo o pai choraria?
b) Embora a frase “Mas não chore, papai”, dita pelo
narrador, já tivesse sido anunciada no título, ao aparecer no final do conto
causa uma quebra de expectativa na leitura. Por quê?
olaa
ResponderExcluirPor que não ten a resposta
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