domingo, 2 de abril de 2017

ATIVIDADE DE LEITURA E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

RECADO AO SENHOR 903

“Vizinho -

Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo.
Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada; e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua É BELA”.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz”

(BRAGA, Rubem. Recado ao senhor 903. In: Para gostar de ler. Crônicas. 12 ed. São Paulo: Ática)

Responda as questões abaixo.

01. É válido afirmar que o título do texto causa ao leitor um certo estranhamento? Justifique.

02. Pelas primeiras palavras do texto, pode-se perceber como é o relacionamento entre o cronista e o vizinho a quem ele enviou a carta. Caracterize esse relacionamento, justificando sua resposta.

03.  Como o cronista está se sentindo em relação ao fato de ter incomodado o vizinho e de este ter-lhe feito uma reclamação? Transcreva do texto os dois adjetivos que confirmam sua resposta.

04. O autor da carta tem consciência de que o vizinho poderia tomar medidas enérgicas para resolver o problema.
a) Quais seriam essas medidas?

b) Ao fazer referência a essas medidas, o cronista está valorizando ou ironizando o modo como as pessoas se relacionam? Justifique.

05. Ao se referir aos moradores usando números e não nomes, o que o cronista está criticando?

06.  Se classificássemos os moradores do prédio em "oceano" ou "lago", quem faria parte do primeiro grupo? E do segundo? Justifique.

07.  Releia.
"Quem vier à minha casa (perdão; ao meu número) será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7, pois às 8:15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305."

a) A que o cronista está se referindo com os números em destaque?


b) Qual desses números exprime, nesse contexto, uma crítica irônica? Por quê?


08. O cronista não concorda com a frieza das relações humanas e com os "regulamentos sociais"; por isso, sonha com uma vida diferente.
a) Como seria essa outra maneira de viver?

b) Por que, segundo o narrador, seria importante viver como ele sonha?

09. A sua vida cotidiana assemelha-se mais à vida sonhada pelo cronista ou àquela que ele critica e ironiza? Explique sua resposta.